Foto: Bárbara Moreira

Imagem: Acervo Museu Afro Brasil – São Paulo/ Brasil. Fotógrafos: Equipe do Núcleo de Salvaguarda
AS VÁRIAS FACES
DE IEMANJÁ
Água. Doce ou salgada, são esses os domínios de Iemanjá. Nas profundezas do oceano, no leito do rio ou no líquido amniótico que envolve o feto no útero, ali está a sua força.
A imagem de Iemanjá, em sua pluralidade, transmite a origem de seus adeptos, os caminhos pelos quais seu culto já percorreu, carrega a memória de uma cultura que sobreviveu apesar da perseguição de seu povo. Esta reportagem multimídia mostra quais são essas histórias.
Foto: Regiane Spielmann

Parte 1
CAMINHOS
DE IEMANJÁ

A compreensão do sagrado sempre foi algo muito pessoal, íntimo e um tanto quanto inexplicável. Leonardo Martinez, 26, candomblecista, descreve Iemanjá como uma bússola que norteia sua vida: “Ela é o lugar que eu corro quando não tenho ninguém, é quem tenho certeza que vai me defender mesmo se eu estiver errado, se tornou meu porto seguro e minha referência”, compartilha emocionado.
Iemanjá é uma divindade africana de origem iorubá - grupos étnicos que estão vinculados por uma língua comum, localizados mais precisamente no sudoeste da Nigéria, em comunidades no Benin, Costa do Marfim, Gana e Togo. É associada aos rios, à fertilidade das mulheres, à maternidade, ao plantio do inhame e à coleta de peixes. Uma doadora e mantenedora da vida.
LOCALIZAÇÃO DO POVO IORUBÁ E SEU CULTO


Pilão feito pelo povo iorubá com a figura
de Iemanjá amamentando.
Imagem: Acervo Museu Afro Brasil – São Paulo/ Brasil. Fotógrafos: Equipe do Núcleo de Salvaguarda
É nas águas da mãe que a vida se constrói. Iemanjá ou Yemojá, proveniente do nome em iorubá Yeye Omo Ejá, significa a Mãe-dos-Filhos-Peixes; peixes esses que são incontáveis e configuram a sua ligação com a maternidade devido aos numerosos filhos. Em seus templos africanos, suas representações sagradas emanam todo esse poder maternal: seios fartos apoiados nas mãos e corpos largos, a sintetização do poder de gerar e nutrir.
ODÔ IYÁ - MÃE DO RIO
Na cultura iorubá, os orixás são manifestações e elementos da natureza (pedreiras, raios, trovões, chuvas, arco-íris, nuvens, árvores), ancestrais que foram divinizados, segundo a tradição oral. A água, um elemento considerado feminino para esses povos, é associada às iabás (orixás femininos) e é delas o domínio dos rios. Obá, Oyá, Oxum e Yewá são algumas dessas divindades, e é claro, Iemanjá.
Devido aos orixás serem manifestações da natureza, o rio que corria na aldeia e alimentava a comunidade era uma manifestação sagrada da divindade. Cristiane Sobrinho Costa, cientista social e doutora em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica: “Iemanjá nasce entre os povos Ègbá. Eles moravam nas margens de um rio que se chamava Yemojá, que era sagrado e essa entidade era fundamental para a organização da vida deles. Então Iemanjá nasce como protetora dessas águas”.
Originalmente o culto surge às margens do rio Yemojá, mas não se sabe ao certo onde ele está localizado. Por meio de registros históricos é apenas possível definir que o local se situa entre as cidades de Ifé e Ibadan onde os Ègbá - grupo étnico dos iorubás - se estabeleceu.
Por questões de conflito territorial com outros grupos, os Ègbá migraram e levaram consigo o culto à Iemanjá para novas águas: o rio Ogum, no estado de Abeokutá, na Nigéria. Até hoje esse culto permanece vivo e práticas devocionais são realizadas em homenagem à divindade.
As origens de Iemanjá estão atreladas ao culto nas águas doces por questões principalmente geográficas, como afirma Caio Victorino, pesquisador e escritor da obra “Òsun - O Rio e Divindade de Osogbo”. “Em território iorubá eles não têm fácil acesso ao mar, mas sim aos rios. Então é muito mais fácil viver com um orixá morando em um rio, que está perto de casa, do que no mar, que está longe”, sintetiza.
A MÃE DO RIO QUE SE ESTENDE NA IMENSIDÃO
Quando a divindade africana chega na costa brasileira, em meados do século XVI devido ao processo de escravização dos povos africanos, algumas de suas características se transformam. Iemanjá se distancia das águas doces do rio para reinar nas águas salgadas do mar.
No período em que o tráfico negreiro se consumava, os povos trazidos do continente africano carregavam no peito aquilo que lhes restava de sua cultura: a fé em seus orixás. Iemanjá cruzou o Atlântico com seus filhos trancafiados nos porões dos navios. Caio Victorino ressalta: “Acredita-se que a água é onde Iemanjá habita, então seja no mar ou não, era ela que os estava protegendo dentro das embarcações”.
As longas viagens da África para o Brasil resultaram em milhares de mortes. Condições subumanas de alimentação, higiene, abuso sexual, psicológico e a violência física fizeram com que muitos dos negros traficados não chegassem ao destino imposto sobre suas vidas.
Tatiane Gimenes, 36, Iyalorixá do terreiro de umbanda Casa de Mãe Iemanjá, localizado em Praia Grande (SP), aponta que “Iemanjá precisava guardar a travessia. Viver em um navio negreiro era uma tortura de meses. Imagine quantos foram abandonados no mar, sem contagem nem nome. Na umbanda chamamos o mar de Kalunga Grande, porque não existe cemitério maior do que o oceano”, lamenta.
Segundo a antropóloga Cristiane Sobrinho, houve embarcações que saíram da costa africana com 54 mil pessoas de etnias diferentes e apenas 34 mil chegaram à costa brasileira, isso significa que 20 mil ficaram pelo caminho. “Isso existiu de 1550 a 1850, ou seja, 300 anos de tráfico transatlântico com navios que chegavam com metade dessas vidas no mar”, explica.
Desembarcando no Brasil, tanto Iemanjá como os outros orixás tiveram seus laços com a natureza e a geografia da África desfeitos e ganharam novas ligações com a terra que acolhia seus filhos e filhas. Iemanjá, um dia cultuada no rio, recebe de seus devotos o culto em um novo lugar: o mar.
IEMANJÁ DE MÚLTIPLOS NOMES
A expansão do culto à Iemanjá em outras terras africanas e continentes fortaleceu uma característica da religiosidade iorubá: a tradição oral. Sem livros sagrados, a transmissão do culto e a sabedoria sobre a divindade sempre se pautaram pela oralidade dos povos. Isso ocasionou diferentes interpretações e agregou uma pluralidade de histórias, dando assim origem a novos nomes e títulos para a rainha das águas.
No candomblé, devido a diversidade de contos sobre Iemanjá transmitidos ao longo das gerações, a divindade adquiriu faces e características tão próprias que elas se subdividem. Cada uma dessas faces possui histórias, cores, personalidades e toda uma gama de simbolismos que torna o seu culto algo muito particular.
G’unté ou Ogunté era uma divindade autônoma que teve a adoração atrelada à Iemanjá devido à migração de seu culto pelo continente africano. Branca de G’unté, 52, Iyalorixá do terreiro de candomblé Asé Iyá G’unté, localizado em Juquitiba (SP), explica: “G’unté era cultuada em Dahomé e é um orixá pouco conhecido que migrou para Abeokutá”, cidade onde o culto de Iemanjá também se estabeleceu e ambas se fundiram, dando origem a Iemanjá G’unté/Ogunté.
Da mesma forma, novas faces e nomes foram se estabelecendo. “Cada Iemanjá foi conhecida pela migração desse culto nas comunidades e aldeias, por isso ela foi sendo conhecida por outros nomes, mas Iemanjá é uma só", esclarece a Iyalorixá Branca.
QUALIDADES DE IEMANJÁ
No entanto, diferentemente do candomblé, alguns segmentos da umbanda não cultuam essas diversas faces ou qualidades de Iemanjá. Pai Danilo de Xangô, 31, Babalorixá da Tenda de umbanda do Caboclo Ubirajara Flecheiro, localizada no Grajaú (SP), explica não descartar “a possibilidade deles trazerem consigo algumas características”. Porém, afirma cultuá-los simplesmente como divindades: “Consideramos os orixás como seres supremos em sua essência, força e vibrações”.
A umbanda praticada por Pai Danilo exalta algumas características da divindade com títulos que lhe são atribuídos. “É comum utilizarmos com mais frequência os termos ‘Rainha do Mar’, ‘Mãe d’água’, ‘Sereia do mar’, ‘Rainha das ondas’ como sinônimo de exaltar a divindade por ser a soberana das águas”, ressalta.

Parte 2
FILHOS DE IEMANJÁ

“Eu sou mãe desde sempre”, conta Carla Reis, 39, candomblecista e filha de Iemanjá. Sua mãe muitas vezes brincava: ‘Você quer ser minha mãe!’. Ela afirma: “O instinto maternal é muito forte em mim e isso é uma característica das filhas de Iemanjá”.
Muito antes de se iniciar em uma casa de candomblé, Carla já sonhava em ser mãe. Durante dois anos tentou engravidar mas, mesmo com acompanhamento médico, não obteve sucesso. Ela conta que foi após um encontro com Iemanjá, no ano de 2019, que a orixá lhe concedeu um milagre.
Era uma das primeiras experiências da nova adepta em uma casa de candomblé de Iemanjá, localizada em Juquitiba (SP). A dirigente do terreiro, Iyalorixá Branca de G’unté, 52, incorporou Iemanjá, uma manifestação em que o orixá se apossa por um momento do corpo de seu filho. Com a energia da divindade dentro de si, Iemanjá passou a mão na barriga de Carla abençoando-a.
“Um mês depois ela estava grávida”, revela a mãe de santo, “hoje, esse bebê é o Inácio, que completou 2 anos”. Esse milagre só fez expandir a fé de Carla nos orixás e, em respeito ao gesto da divindade em sua vida, ela se iniciou no candomblé, dia 18 de janeiro de 2021, como filha de Iemanjá.

Carla Reis com o filho e o marido no terreiro
Asé Iyá G'unté.
Foto: Acervo pessoal
Grata, Carla transmite nos cantos, nas vivências e nos contos esses ensinamentos para seu filho. “Ele adora um atabaque, um agogô, ele canta o dia inteiro. Então eu passo para ele isso, que nós somos dos orixás e ele vive esse amor comigo”, conta ela.
A cerimônia de iniciação de Carla chegou ao fim após 17 dias reclusa do mundo exterior, na única festa celebrada no terreiro da Branca no ano de 2021. Ao som dos atabaques, dos cantos e danças dos adeptos, ela se apresentou ao mundo vestida das cores azul e verde, como filha de Iemanjá G’unté em uma casa de Iemanjá G’unté.
Nas religiões afro-brasileiras, ser filho de santo é se entender como parte da energia regida pelos orixás e, da mesma maneira, ser reconhecido por eles. Presentes nos elementos da natureza, essas divindades possuem características marcantes que prevalecem e atuam vigorosamente na personalidade e na vida de seus filhos. Desta forma, a maternidade bebe das águas de Iemanjá.
Segundo uma das versões das histórias eternizadas pela tradição oral da cultura afro-brasileira, Iemanjá pariu dez filhos orixás e, junto de Oxalá, deu origem ao universo. Rafael Teixeira, mestre em história pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), conta que “de seu ventre nascem os orixás e a humanidade. Essa mesma humanidade que depois vem cultuá-la”.
A MATERNIDADE PARA ALÉM DA PERFEIÇÃO
“Ser mãe não tem nada dessa romantização”, diz Vitória Aguiar, 25, iniciada no Ìsésé Làgbá (culto tradicional iorubá). Por muito tempo Vitória buscou atingir as expectativas de mãe perfeita que idealizou para si. “Ter essa energia de Iemanjá para pedir por calma quando as coisas não estão da forma que gostaria é muito importante. Eu descobri que não se trata disso. Eu sou a mãe que eu posso ser e eu dou o meu melhor”, explica.
A figura materna de Iemanjá foi fortalecida no Brasil por conta do sincretismo presente na cultura afro-brasileira. Bruna Reis, mestre em antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que “devido à forte influência católica, Iemanjá é muitas vezes associada à Maria - exemplo de mãe extremada que sempre esteve com Jesus - e às Nossas Senhoras”. São símbolos de mães consideradas puras, castas e obedientes.
No entanto, Tatiane Gimenes, 36, Iyalorixá do terreiro de umbanda Casa de Mãe Iemanjá, localizado em Praia Grande (SP), pontua: “Para eu dizer que Iemanjá é a Nossa Senhora, eu tenho que esquecer que ela é teimosa, um pouquinho louca e que ela tem todos os defeitos que não pertencem a um santo católico”.
Para Karina Santos, 32, umbandista e filha de Iemanjá, foi muito difícil se aproximar da entidade. Ela não conseguia se enxergar nas qualidades de chorona e carinhosa que normalmente via nos filhos de orixá. Karina sempre se considerou muito objetiva e impetuosa em suas decisões. “Onde foi parar minha Iemanjá?”, dizia ela.

À esquerda, Karina Santos canta e bate palmas em uma gira no terreiro Casa de Mãe Iemanjá.
Foto: Regiane Spielmann

Vitória Aguiar em cerimônia anual do Ìsésé Làgbá (culto tradicional iorubá).
Foto: Acervo pessoal
A umbandista é filha de Iemanjá Ogunté, que é ligada à floresta, às guerras, assim como Ogum. Foi descobrindo sobre sua qualidade que Karina se encontrou. “Eu sou mãe e em questão de encostar no filho, ou falar no filho, a Ogunté já entra em ação. Põe a espada pra fora e guerreia mesmo. Nesse sentido eu sou muito mãe protetora, típico de Iemanjá”.
Desta forma, o lado maternal da divindade pode se manifestar de diversas maneiras a depender de sua qualidade ou caminho. Alguns podem associá-la ao carinho materno, outros às marés e às ondas revoltas.
IEMANJÁ MÃE DE TODOS
A Iyalorixá Tatiane nunca gerou filhos, mas no que se refere à Iemanjá, ser mãe pode ir muito além do ato de dar à luz e de cuidar apenas dos seus. As histórias da divindade narram que de seu ventre nasceram muitos orixás, porém, ela ainda adotou Omolu, filho de Nanã.
Segundo os itãs (histórias dos orixás) do povo iorubá, Omolu nasceu repleto de feridas espalhadas pelo corpo. Ao ver o filho coberto de machucados, Nanã o abandonou à beira mar para que a maré cheia o levasse. Iemanjá o encontrou quase morto e o acolheu em seus braços como filho até que se curasse.
A Iyalorixá Tatiane tentou por dez anos engravidar, mas sem sucesso. Até que um dia foi chorar aos pés do baiano seu Zé do Coco, uma entidade presente na umbanda que se manifestou no corpo de um adepto. Aos prantos, Tatiane disse que queria muito ser mãe e a entidade lhe respondeu: “Mas você vai ser. Você não pode ter um filho só, você nasceu para ser a mãe do mundo’”, ela conta.
A partir do ano de 2018, Tatiane se tornou mãe de santo de um terreiro de umbanda ganhando, de certa forma, muitos filhos para olhar e cuidar. “Eu acho que é por isso que eu nasci de Iemanjá, eu precisava ter a mãe que não se recusa ser mãe de ninguém”, reflete.

Iyalorixá Tatiane Gimenes canta e bate palmas com seus filhos de santo, em um rito no terreiro de umbanda Casa de Mãe Iemanjá.
Foto: Bárbara Moreira
A CALMA DAS MARÉS REVOLTAS
Vivian Ferreira, 29, umbandista e filha de Iemanjá, sonhava com o oceano desde a infância. “Eu sentia uma vontade lascada de estar no mar, embora só o tivesse visto uma vez, aos dois anos de idade”, explica. Foi aos 16 anos que ela finalmente conseguiu realizar o seu desejo. “Quando o ônibus chegou no litoral, senti a respiração mudar. Vi o mar e comecei a chorar”, lembra.
Depois de ir à praia, ela decidiu entrar em uma casa de umbanda. Se iniciou como filha da orixá. Hoje, Iemanjá para Vivian é uma mãe que a acalma e a guia em períodos de instabilidade. “Acho que ela me orienta no oceano das minhas emoções e impede que meu barco vire, que eu me afogue ou me perca nessas águas”, diz.
A figura de Iemanjá é reconhecida por trazer equilíbrio psíquico emocional para seus adeptos. Por isso, nas religiões afro-brasileiras, a orixá também recebe o nome de “Iyá Ori”. Pai Cláudio, 48, Babalorixá do Templo de umbanda da Luz Azul, localizado na zona oeste de São Paulo, explica que “Ori é o nosso pensamento, nosso eu. E essa mãe Iemanjá, para nós, é a mãe de todos os oris, a mãe de todas as cabeças”.
Felipe Evangelista, 27, que é candomblecista, conta que Iemanjá lhe amparou em um período turbulento de sua vida, em 2010, quando enfrentava a depressão. Seu primeiro contato com a divindade foi através de um jogo de búzios, em que a orixá lhe trouxe a solução para problemas que lhe atormentavam. “Me senti seguro e amparado, pois tive a certeza de que ela era a mãe que me acolheria com força e amor”, ele recorda.

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Parte 3
IEMANJÁ À BRASILEIRA

Imagem: Acervo Museu Afro Brasil – São Paulo/ Brasil. Fotógrafos: Equipe do Núcleo
de Salvaguarda
A católica Andréa Bezerra, 53, mescla elementos do catolicismo para reverenciar Iemanjá. Apesar de sua religião não associar o controle dos oceanos a uma divindade, ela compreende a força da rainha das águas. Andrea faz o sinal da cruz toda vez que entra no mar: “Sinto a presença dela e a cada mergulho que dou peço sua proteção”, afirma.
A maior aparição de Iemanjá na cultura popular se deu por conta da modificação da sua aparência física ao longo do tempo. A divindade adquire novas formas sinuosas, aspecto jovial, pele alva, longos cabelos lisos e negros. Características que a distanciaram de suas origens africanas e possibilitaram que ela fosse socialmente tolerada. Iemanjá foi “abrasileirada”.
A mudança física sofrida no Novo Continente é fruto principalmente da ideia de supremacia dos europeus e da falta de liberdade de culto presente no período colonial. Os escravos passaram a disfarçar Iemanjá em figuras do catolicismo. A santa Nossa Senhora dos Navegantes - padroeira dos marinheiros e protetora dos perigos do mar - é a nova roupagem da rainha das águas.

Escultura de gesso de Iemanjá.
Imagem: Acervo Museu Afro Brasil – São Paulo/ Brasil. Fotógrafos: Equipe do Núcleo de Salvaguarda

Escultura de Nossa Senhora dos Navegantes.
Foto: Raul Kestring
Para Bruna Reis, mestre em antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), “a desumanização dessa população fomentou a ideia de que o que merecia ser respeitado e venerado teria a pele branca e o olho azul. Por esse motivo, Iemanjá e outros orixás passaram a ser representados dessa forma”.
Um fenômeno semelhante aconteceu com Jesus Cristo que, ao sair do Oriente Médio, sua terra natal, ganhou características de homem branco, com cabelos e olhos claros. Além da europeização ser parte integrante desse processo, o embranquecimento da divindade africana foi marcado pela escravidão e repreensão de seus devotos.
Rafael Teixeira, mestre em história pela da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), enfatiza que o sincretismo nesse caso foi um processo forçado, diferentemente da África, onde “há construções de religiões que se misturam”. Na avaliação do historiador, “já começa aí a questão do racismo e da imposição de uma fé alheia”.
O EMBRANQUECIMENTO PARA ALÉM DO SINCRETISMO
Também há a versão de que a famosa imagem de Iemanjá em frente ao mar disseminada no Brasil foi, na verdade, uma pintura de Dalla Paes Leme, encomendada pelo marido dela na década de 50.
Como conta Branca de G’unté, 52, Iyalorixá do terreiro de candomblé Asé Iyá G’unté, localizado em Juquitiba (SP): Dalla “tinha traços de índia, cabelos compridos, a pele um pouco mais clara, e se vestia muito com vestidos longos. Esse retrato foi replicado e as pessoas começaram a achar muito bonito porque havia o mar atrás e ela carregava uma tiara de estrela”.
Com a intensa propagação, o retrato chegou a uma casa de umbanda, “depois acho que fizeram uma reformulação dessa imagem e acabaram colocando como semelhança à Iemanjá”, complementa Branca.
Apesar do racismo ser o fator primordial para o embranquecimento da divindade africana, o historiador Rafael Teixeira acredita que esse processo é também de controle do corpo feminino. “Esse universo machista, racista, constrói a figura de Iemanjá branca para destruir a figura da mulher negra como um potencial de diversidade, de desconstrução e revolução da nossa sociedade”.
A economia também rege esse assunto já que está relacionada à aceitação da sociedade. A antropóloga Bruna Reis acredita que a popularização do culto à divindade devido à Festa de Iemanjá em Salvador foi outro elemento que fortaleceu o processo. Para ela, esse fator “aumentou a necessidade do embranquecimento, até mesmo para que a celebração fosse respeitada por todo o Brasil, sendo hoje uma das maiores festividades religiosas do país”, ressalta.
IEMANJÁ NO IMAGINÁRIO BRASILEIRO
Nem sempre os praticantes das religiões afro-brasileiras definem Iemanjá fisicamente. Para parte deles, a divindade pode ser uma luz ou uma força da natureza, sem qualquer tipo de pigmentação.
“Eu não a vejo sendo uma mulher com o corpo exuberante nem gorda”, explica Danielle Matos, 19, umbandista e filha de Iemanjá. “Eu a enxergo como se fosse uma luz que me acalma, me tranquiliza, me abraça nas horas que eu preciso e que me dá colo quando estou chorando”, conclui ela.
Já para Tatiane Gimenes, 36, Iyalorixá do terreiro de umbanda Casa de Mãe Iemanjá, localizado em Praia Grande (SP), a verdadeira imagem de Iemanjá é o oceano. “É ele que vai conseguir retratar em um único espaço todas as iemanjás que existem dentro de cada um de nós”, afirma.
Enquanto no que se refere à cor da divindade, Caio Victorino, pesquisador e escritor da obra “Òsun - O Rio e Divindade de Osogbo” explica que “hoje em dia, dentro do candomblé, do omolokô, da umbanda, há movimentos que falam de Iemanjá não ser uma mulher branca, e sim preta”.

Altar sendo preparado para rito na Casa de Mãe Iemanjá.
Foto: Bárbara Moreira

Estatueta de Iemanjá na Casa de Mãe Iemanjá.
Foto: Bárbara Moreira
Atualmente, visões como a de Rochele Rodrigues, 56, umbandista e filha de Iemanjá, se tornaram mais comuns: “Pra mim Iemanjá não é aquela que a gente vê nas estátuas, com o corpo esbelto, escultural. Eu a vejo cheinha, com seios mais fartos, uma mulher normal, quando se torna mãe”.
Outra face popular de Iemanjá é em forma de sereia. O corpo da divindade adquire o formato metade peixe, metade mulher devido a hibridização de entidades e trocas culturais com os povos indígenas. Cristiane Sobrinho Costa, cientista social e doutora em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), conta: “Algumas sereias já eram cultuadas no Brasil, enquanto outras eram cultuadas na África”, como é o caso das figuras míticas Iara e Olokum.

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Escultura de Iemanjá negra, em forma de sereia, exposta
na Casa de Mãe Iemanjá.
Foto: Bárbara Moreira
Escultura de gesso de Iemanjá branca, em forma de sereia.
Imagem: Acervo Museu Afro Brasil – São Paulo/ Brasil.
Fotógrafos: Equipe do Núcleo de Salvaguarda
Parte 4
CASAS DE IEMANJÁ

“Existem pessoas predestinadas com esse caminho de ser líder religioso”, ressalta a Iyalorixá Branca de G’unté, líder do Asé Iyá G’unté, terreiro fundado em 1998, localizado em Juquitiba (SP). Segundo ela, “não são todas as pessoas que são escolhidas”.
A decisão da abertura de um território de culto aos orixás, tradicionalmente chamado na comunidade afro-brasileira de terreiro, egbé ou ilê axé, começa principalmente pelo desejo do filho de santo de servir aos orixás. Estender o culto para a comunidade e construir novos laços que mantém a ancestralidade viva dentro desses espaços.
Graziela Domini, escritora e iniciada para Iemanjá Sessu pelas mãos de Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018), uma das principais líderes do candomblé baiano, comenta: “O filho ou filha de Iemanjá vai sentir um ímpeto dentro dele, uma força que o conduz a abrir uma casa para o orixá e, se for correto, deve contar ao seu pai ou mãe de santo sobre o que sua natureza está pedindo”.
Com a Iyalorixá Branca o processo foi diferente. Pai Alagenã, iniciador de Branca de G’unté, foi quem identificou que sua filha tinha personalidade de líder e que seu caminho era sacerdotal: "Fosse pelos meus sonhos, intuições, pela minha forma de agir e também por sempre estar junto dele conduzindo as situações, aprendendo sobre folhas, ebós e cantigas. Eu tinha uma desenvoltura muito rápida para o aprendizado”, relembra a líder do Asé Iyá G’unté.
É por meio da queda dos búzios, pelas mãos de iyalorixás e babalorixás, que os orixás se comunicam, orientam e manifestam sua vontade. A vida religiosa começa pelo oráculo revelando que Iemanjá é a dona daquela cabeça. É também através dele que a rainha das águas confirma se seus filhos são líderes natos para conduzir casas dedicadas ao seu nome.

Iyalorixá Branca de G’unté dando a benção para um de seus filhos de santo.
Foto: André Luiz Silva
Hoje, o ilê axé construído por Branca de G’unté é útero fértil que possibilita o nascimento de muitos "omo ejá". São os filhos peixes que mantêm a tradição dos orixás pulsando e revivem os passos de um caminho que ela mesma trilhou.
OS TERREIROS E A SUA CULTURA
Os terreiros abrigam dentro de si uma diversidade de ritos, celebrações e tradições repletas de música, dança, comida e vestimentas típicas. Essas manifestações culturais se integram dentro dos barracões em uma grande festa para as divindades.
As oferendas, por exemplo, são feitas em sua maioria na forma de alimentos. Trata-se de uma troca de energias. Ao oferecer um prato à divindade, os adeptos pedem por espiritualidade e fortalecimento. Os orixás, por sua vez, recebem essa força vital, que é a comida.

Oferendas na casa de candomblé
Asé Iyá G’unté.
Foto: Regiane Spielmann
Filhos de santo dançam e cantam segurando oferendas. Este é o primeiro ritual a ser realizado antes das celebrações de candomblé.
Vídeo: Safira Teodoro
"Nós não vivemos do ouro, da prata, não comemos dinheiro”, conta Iyalorixá Branca. Por esse motivo a comida adquire grande valor nas oferendas ritualísticas para os orixás. “Nosso corpo se alimenta dos grãos, do que vem da terra, do que é realmente a natureza", completa.
Cristiane Sobrinho Costa, que é cientista social e doutora em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirma que os orixás precisam ser agradados o tempo todo. Isso garante que a energia de toda a casa esteja sempre em movimento. A principal maneira de atingir esse objetivo é oferecendo um prato de comida à divindade. “Os alimentos precisam estar de acordo com os rituais. É uma forma de manter o equilíbrio da casa e do universo”, diz.
Para se ligar à Iemanjá, o Pai Cláudio, 48, Babalorixá do Templo de umbanda da Luz Azul, localizado na zona oeste de São Paulo, explica que oferece frutos aquáticos, como camarão e peixes. Também serve à orixá frutas, arroz, manjar, flores brancas, junto com um copo de leite e ainda acrescenta “uma vela azul clara, uma vela branca e uma vela prata. Essas três cores representam Iemanjá”, conta.

Oferenda para Iemanjá feita com uvas verdes e ebô - um prato composto por milho branco, ou canjica cozida.
Foto: André Luiz Silva
A coloração também carrega em si um caráter sagrado para as religiões de matriz africana. Isso abrange desde as vestes usadas pelos filhos de orixá durante os cultos e ritos, até adornos, oferendas e imagens que preenchem os terreiros. O colorido dos colares e fios de contas, das barras das saias, lenços e laços simbolizam as divindades.
Iemanjá pode ser representada por diferentes cores de acordo com sua qualidade ou caminho. No entanto, Tatiane Gimenes, 36, Iyalorixá do terreiro de umbanda Casa de Mãe Iemanjá, localizado em Praia Grande (SP), explica que a rainha do mar sempre estará ligada ao azul e às cores que provém dele. “Azul é tranquilidade, porque Iemanjá curou as cabeças. Azul também é a cor da água. Ela pode, sim, de acordo com a sua história, mudar as cores, mas sempre vai caminhar nesses tons e variações de azul, como verde, lilás, branco”.
Todas essas manifestações sobreviveram a séculos de repressão e perseguição da cultura negra. As músicas cantadas durante as festas
e ritos dos terreiros sustentam em grande parte o papel da memória oral das religiões afro-brasileiras, elas revivem as histórias e os feitos dos orixás. A dança embala essas cantigas com gestos e movimentos também cheios de significados, que ajudam a narrar as histórias das divindades.
Rafael Teixeira, mestre em história pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), conta que a música resgata o passado ancestral e a força que têm os deuses africanos. “Tem um poema do escritor moçambicano Mia Couto que fala mais ou menos assim: ‘Nem católicos nem protestantes entenderam que em África, os deuses dançam. Caso proibissem o toque do tambor, os negros fariam do corpo um tambor e iriam dançar até que a terra rachasse’. É isso, não há religiões afro-brasileiras, africanas, sem dança”, afirma ele.
FESTAS E RITOS DE IEMANJÁ
A construção da identidade dos terreiros acontece a partir dos rituais que são feitos dentro das casas. A Festa das Iabás e a Festa das Mães são exemplos de celebrações que louvam e difundem as histórias dos orixás femininos, entre eles Iemanjá.
Para Pai Danilo de Xangô, 31, Babalorixá da Tenda de umbanda do Caboclo Ubirajara Flecheiro, localizada no Grajaú (SP), esses rituais representam a força das divindades femininas e o total festejo e sintonia com o sagrado. “Na Festa das Mães, oferendas à Iemanjá são preparadas com flores, perfumes, pedidos e colocadas em barquinhos. Após a finalização da gira, descemos ao litoral em comboio para entregarmos as oferendas e saudá-la em seu ponto de força”, explica.
O cientista social Pedro Neto menciona que a Dança das Águas é um ritual muito específico da Festa das Iabás. A divindade se apresenta com uma cabaça cortada ao meio, enfeitada com búzios e cheia d’água. Ela se movimenta ao som de uma cantiga que exalta essa força da natureza como símbolo principal de feminilidade. “A água é um elemento feminino que acalma, é para se beber, para se banhar, para se curar, mas que também é um tsunami”, diz ele.

Ondas do mar, elemento que simboliza Iemanjá e onde costuma-se depositar oferendas em homenagem à divindade.
Foto: André Luiz Silva

Iemanjá manifestada na Iyalorixá do Ilé Àse Pàlepà Màrìwò Sessu segura cabaça enfeitada durante Dança das Águas, em uma Festa de Yemojá.
Foto: Fernanda Ayodele Procópio
Nas comunidades religiosas de matriz africana é comum a presença de famílias, muitas crianças nascem e crescem no axé. Entre as celebrações de Iemanjá, o Omodé Yemojá (as crianças de Iemanjá) é um dos rituais que acontece nos barracões de candomblé.
Pedro Neto conta que no terreiro que foi iniciado, Iemanjá Sessu, dona da casa em questão, escolhia uma criança e a carregava em seu colo durante sua festividade anual, dançando e a embalando. “A partir daquele momento Iemanjá passava a proteger a criança, independentemente de ser o orixá dela ou não”, explica o sociólogo.
DO INTERIOR DOS BARRACÕES PARA AS RUAS
Baianos e turistas são atraídos às ruas de Salvador pela Festa de Iemanjá, celebrada em 2 de fevereiro no bairro do Rio Vermelho. O carioca Rhian Vieira, 32, devoto de Iemanjá, participou do evento pela primeira vez em 2020 para agradecer por bênçãos. “As ruas na noite do dia 1º estavam tomadas por blocos, por música tocando o tempo todo, o povo bebendo e celebrando. A festa é um pré-carnaval”, lembra.
Rhian explica que romantizou a festa antes de conhecê-la de fato, pois imaginava que ia se deparar apenas com manifestações religiosas afro-brasileiras. Ele se surpreendeu com a popularidade da celebração devido ao grande número de pessoas que havia nas ruas.
“Achei muito bonita a forma como não existe distinção entre sagrado e profano. O cara pode estar bêbado a noite toda acompanhando o bloco, mas ao amanhecer vai colocar flores no mar para Iemanjá”, compartilha o carioca.

Escultura de sereia na entrada da Casa de Iemanjá, no bairro Rio Vermelho, em Salvador - Bahia.
Foto: Fabiana Siqueira

Rosas brancas são lançadas ao mar em homenagem e agradecimento à Iemanjá.
Foto: Regiane Spielmann
O ápice da celebração é na alvorada, quando os pescadores soltam muitos rojões em homenagem à rainha das águas e as oferendas seguem seu destino: o reino de Iemanjá. “Neste momento, os barcos que estavam ancorados na praia coletando presentes há uns três dias, saem em direção ao mar para fazer as oferendas para Iemanjá”, relembra Rhian, que promete voltar à orla do Rio Vermelho para reviver as celebrações mais uma vez.
Essa maneira de expressar a religiosidade e cultura de um povo projeta não só a cidade como também os pescadores do Rio Vermelho, movimentando a economia local.
Todos esses fatores possibilitaram o tombamento da festividade. No entanto, apesar da relevância financeira e cultural da celebração, o reconhecimento só ocorreu após um episódio controverso. Houve uma tentativa de mascarar o propósito do evento, ocultando o nome de Iemanjá dos cartazes de sua própria festa.
A antropóloga e cientista social, Cristiane Sobrinho, foi responsável pela elaboração do laudo que tornou a celebração Patrimônio Cultural Imaterial de Salvador em 2020. Ela menciona que no ano de 2019, “a própria prefeitura colocou vários cartazes na cidade que diziam: ‘Venham para a festa de 2 de fevereiro!’”. No entanto, Cristiane destaca que não existe esse evento na cidade. “A festa de 2 de fevereiro é a Festa de Iemanjá”, argumenta.
Por isso a importância da celebração ter sido reconhecida, avalia Cristiane. O laudo garante o compromisso dos gestores públicos da capital baiana e, consequentemente, a proteção e continuidade da celebração. “A prefeitura tem que apoiar essa festa porque é patrimonializada e perpassa por cima da vontade dos governantes”, reforça.
Apesar de todo o preconceito, a divindade africana continua sendo homenageada, seja em festividades dedicadas exclusivamente a ela ou não. Para além da festa de 2 de fevereiro, umbandistas comemoram o dia de Iemanjá em 15 de agosto ou em 8 de dezembro, dependendo da localidade.
Making Of
POR TRÁS
DAS CÂMERAS
Esta reportagem especial é resultado de uma união de esforços e talentos para compor o Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi, em junho de 2021.
André Luiz Silva, Bárbara Moreira, Mariana Vince, Paulo Henrique Pires, Regiane Spielmann e Safira Teodoro são os olhos, ouvidos, bocas e mãos que estão por trás de todo esse material sobre Iemanjá. Uma ponte entre os entrevistados e esta reportagem especial produzida sob a orientação do nosso querido professor, Bernardo Queiroz.
Lara Teodoro e Matheus Henrique Gonçalves são os artistas que sonharam este projeto conosco e deram vida, por meio de talentos, às mais belas representações de Iemanjá para que vocês mergulhem em suas águas e mitos.
Em meio à uma pandemia que torna todo o processo ainda mais difícil, um desafio sem titubear, ver este trabalho nascer é um acalanto nos braços da mãe dos filhos peixes.

































